Temos aqui uma interessante reflexão sobre o espaço ocupado pelo celular em nossa vida. Mais do que isso: é uma provocação saudável sobre a importância do vazio na sua ausência .
Autoria: Marcos Iki, professor de Filosofia do Ensino Médio do Colégio Santa Maria
“O tédio é o pássaro que choca os ovos da experiência. O menor sussurro das folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes” – Walter Benjamin
Nas últimas duas décadas, temos vivido a expansão da internet para todos os âmbitos da vida social. Outrora restrita a um computador imóvel, ligado à rede telefônica, hoje ela é acessível por meio de um celular que habita os bolsos de quase 80% de brasileiras e brasileiros – ainda que de modo desigual em virtude do preço do uso de dados.
Em escolas da classe média, o dispositivo é ubíquo nas mãos das jovens e dos jovens. Nunca é esquecido, é mobilizado nos intervalos das aulas, levado nas saídas para os banheiros. Como as caveiras que pairavam sobre as mesas na tradição cristã do memento mori – a nos lembrar que nós somos perecíveis -, ficam hoje os celulares sobre as mesas – a nos lembrar que o mundo é perecível, como um símbolo de que estamos sempre perdendo algo que ocorre na esfera digital.
Sabemos dos deleites que esse acesso à internet traz: a comunicação instantânea, o acesso a diversas fontes de informação, o prazer da novidade. Mas pensamos pouco sobre o que ele nos rouba, e dentre essas coisas está o tédio. A internet implode com a experiência do tédio, na medida em que nos fornece uma torrente ininterrupta de experiências novas, talhadas à perfeição por algoritmos que parecem saber nossos desejos mais íntimos.
Isso tem implicações relevantes para a experiência da sala de aula: a experiência pedagógica depende do tédio. O tédio, como tão bem descrito por Benjamin, põe em movimento as experiências em novas sínteses e dá tempo ao trabalho da imaginação.
A escola é também tempo e espaço para esse tédio: é o espaço de um coletivo afastado da vida familiar, em que posso me experimentar de novos modos; é o espaço de um aqui e agora em que me deparo não só com o que conheço, mas com o que me é estranho e distinto. Na escola deve haver o incômodo e o desafio, assim como o acolhimento e a escuta.
Pensamos pouco sobre o celular. Vê-se, no cotidiano da sala, que ele é um refúgio para alunas e alunos assim que se deparam com dificuldade na atividade proposta – mesmo que seu uso esteja vetado naquele momento, eles preferem o risco da advertência à experiência do tédio e da frustração. O celular, esse dinâmico espelho de Narciso que nos abraça e nos conforta, traz o risco de nos impelir a ver sempre a mesma superfície.
O uso da internet na sala de aula traz inegável riqueza como fonte de pesquisa e de possibilidades de formas de trabalho. Mas sobretudo depois de um período tão extenso de experiências pedagógicas online – para quem teve essa possibilidade -, há que se lembrar que existe uma potência singular em fechar laptops e celulares e experimentar estar com a turma da sala de aula, em um espaço único, de vivência do comum.