Além dos Muros da Escola

Projeto de Ação Político e Social: entre o saber, viver e ser

Experiência dos estudantes do Ensino Médio em uma aldeia indígena gera impacto e importantes reflexões; alunas descrevem com maturidade um olhar mais aprofundado do mundo em que vivemos, a partir desta vivência

Autoria: Mayra Lourenço – Professora de Brasil e As Múltiplas Identidades – 1ª série do Ensino Médio

O Ensino Médio se propõe a inaugurar, na vida de seus estudantes, uma nova fase com a produção de conhecimento mais rigorosa e sistematizada. Conceitos, princípios e análises detalhadas passam a ocupar as folhas, arquivos e mentes dos alunos. A busca pelas evidências, pelo que é estabelecido pela ciência, se sobrepõe à opinião, a partir do estudo de autores e correntes de pensamento considerados pilares do pensamento ocidental.

A breve descrição parece só reproduzir o mais do mesmo, como se fosse a escola de sempre. No entanto, para além do importante estudo de normas e padrões, um Novo Ensino Médio procura estabelecer uma outra relação entre os estudantes e a construção do conhecimento. O saber, articulado com a metodologia que incentiva a pesquisa e a autonomia, tem o poder de ultrapassar as barreiras do tradicional, na medida em que a pergunta entra para o primeiro plano da aprendizagem, a ponto de questionar-se como e por que se aprende o que se aprende? Quem escolheu esses saberes e não outros?

A escolha do objeto de estudo do Projeto de Ação Social do Itinerário de Ciências Humanas se enquadra na perspectiva de questionar o funcionamento da sociedade, com seus dilemas e limites, mas também se propõe a trazer uma experiência que faça os estudantes pensarem sobre seus papéis no mundo em que vivem:

Não importa o quanto você estude português e matemática na teoria, só se entende de verdade na prática. Com culturas não é diferente, mesmo após meses de pesquisas e aprendizados, ver e viver a realidade da aldeia abriu mais ainda minha mente, me desprendi completamente da tecnologia, tive a oportunidade de tirar dúvidas e entender mais o funcionamento e os costumes de lá, abri minha mente, e é uma experiência que recomendaria para todos.

Isabella Rosler – aluna da 1ª série E.M.

Como a aluna descreveu, os estudos sobre o conceito de cultura, sociedade, hierarquias sociais e dinâmicas históricas foram ampliados a partir da visita à aldeia indígena Kalypety, no extremo sul da cidade de São Paulo. Na ocasião, os alunos e alunas puderam fazer trilhas, visitar a casa de reza, ouvir as lideranças locais e almoçar a comida tradicional Guarani. Para além de ver os conteúdos operacionalizados na prática, o objetivo se constitui em enxergar outro modo de viver e ser, através do olhar antropológico:

A visita à aldeia Kalipety foi uma experiência completamente transformadora, ainda mais com os conhecimentos prévios que possuímos adquiridos em aula desde o início do ano e que foram essenciais para um maior proveito. Conhecer a aldeia foi uma oportunidade que abrangeu uma consciência além da grade curricular do itinerário de humanas; encaro como ideias que levarei para a vida.
Quando penso na minha antiga percepção sobre os povos indígenas, tenho a consciência de como a experiência foi enriquecedora. Entrar em contato com pessoas que vivem de uma maneira tão singular e distinta da que sempre me foi ensinada foi uma possibilidade de ver o mundo de maneira distinta, descobrir que existem maneiras diferentes de viver a vida. Uma maneira que acolhe o coletivo, o diferente, que valoriza o necessário e o progresso saudável.

Eduarda Calado– aluna da 1ª série E.M.

Ou proporcionar um deslocamento do lugar para que, pelo diferente, pensem a si e ao redor:

A aldeia contribuiu de diversas formas para novos aprendizados, alguns deles incluem reconhecer o meu lugar de fala, por exemplo poupar falas e ouvir mais antes de tomar alguma decisão por impulso ou por falta de pensamento. Essa experiência também trouxe reflexões sobre como, em uma vida urbana e movimentada, acabamos deixando de lado pensamentos mais profundos sobre questões do nosso dia a dia e pensamentos mais superficiais que prejudicam nossas reflexões sobre a cura interior, por exemplo.

Anna Falletti- aluna da 1ª série E.M.

A estratégia pedagógica do estudo do meio não é uma prática nova na educação; inovador é garantir que os alunos e alunas não saiam do espaço escolar apenas para uma visita, mas construam um olhar crítico, analítico e sensível para o objeto de estudo, no caso, a sociedade. Para tanto, trata-se de preparar os alunos e alunas para a experiência, conduzir e estabelecer claramente os objetivos de estudo para que sejam capazes de coletar os dados necessários para a investigação.

Os passos acima enumerados constituem-se de alguns procedimentos metodológicos caros às ciências sociais que, ao serem processualmente trabalhados, permitem que os alunos se tornem sujeitos do conhecimento, capazes de saber olhar, registrar e analisar o que está à sua volta.  O texto a seguir é a produção de uma aluna que conseguiu fazer da teoria, vida, elaborando uma reflexão complexa e profunda da realidade:

A experiência prática é uma das maiores oportunidades que a curiosidade pode proporcionar. Desde cedo, a noção sobre sociedade é trazida para a sala de aula, nos fazendo questionar e aprender sobre um processo colonizador e cruel. A história do nosso país se deu por imposições violentas. Foram 300 anos de pura miséria e perseguições. Era desumano. E ainda é; Ainda não acabou. Como entender isso? Como sentir essa dor que não é minha?

Receber relatos do que ocorreu na história não é, de fato, relevante se não pudermos ter o convívio e a sensação direta. Parece não ser suficiente. Certamente não é a mesma coisa.

A visita à aldeia foi uma vivência que me marcou e espero que tenha marcado os outros. Não eram somente ocas, cocares, pinturas e mandiocas, pelo contrário, eram construções, e a arte era diferente da perspectiva europeia colonizadora. Até a comida era diferente do que esperávamos. Era o que chamamos de normal. Penso que esse normal deveria ser compreendido por todos. Claro, são modos de viver diferentes, mas isso não torna ninguém superior. Com a visita, na verdade, começo a acreditar que a sociedade necessita do modo de vida desses povos. Cada vez mais nos tornamos individualistas. Nada mais importa a não ser o próprio benefício. Enquanto isso, na aldeia Kalipety pode-se ver a importância da convivência para construir-se uma comunidade que se respeita.

Dessa forma, podemos desconstruir e desmistificar esses estigmas e nos unir para lutar em defesa da nossa origem; percebe-se a importância do cuidado com a terra, que é mãe, e suas ligações espirituais conosco. Em outro parâmetro, percebe-se a ameaça que o planeta sofre. Sempre correndo atrás do dinheiro e do material, passamos por cima do que nos criou, do que, de fato, nos abasteceu e nos abastece.

Antes da visita me questionava: Por que esses povos, que sempre foram perseguidos e mortos por nós, brancos, e ainda continuam sendo ameaçados, nos aceitariam em suas casas? Pois, após a visita, percebi como a esperança ainda é presente. O objetivo da visita é justamente revelar a verdade de suas culturas e, além disso, mostrar como o ouvir é importantíssimo para a vida. Devemos nos unir e compartilhar nossos pensamentos. Devemos valorizar a relevância de viver em comunidade e perceber que somente juntos podemos fazer mudanças.

Maria Fernanda– aluna da 1ª série E.M.

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