Em suas palestras, Sigmar Malvezzi deixa claro que a Educação do século XXI deve dialogar com as transformações socioculturais e tecnológicas da contemporaneidade. Na entrevista a seguir, o profissional evidencia a necessidade da parceria entre escola e família, a importância da formação cidadã e do protagonismo do aluno, o papel da tecnologia e muito mais. Graduado em Psicologia, Doutorado em Behaviour of Organizations, Livre Docente, Malvezzi é professor e pesquisador do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e da Fundação Dom Cabral.
A Educação pode colaborar com o desenvolvimento do aluno como sujeito e como cidadão? De que forma?
A educação na escola é o veículo apropriado para essas duas tarefas. A escola complementa e enriquece o processo de socialização primária, ampliando e consolidando a subjetivação do indivíduo, iniciada na comunidade familiar. A subjetivação é uma plataforma constituída por estruturas cognitivas e afetivas que alicerça a compreensão da sociedade, de si mesmo e do próprio protagonismo na vida. Nessas estruturas se integram valores, sentidos, identidades e demais fatores que o indivíduo requer para a compreensão de si mesmo no mundo. Essa plataforma é iniciada no processo de socialização primária, ampliada na escola e continuamente atualizada na convivência social. A atuação do indivíduo como sujeito e como cidadão é sustentada e direcionada pelo conteúdo dessa base subjetiva.
Quais resultados se obtém por meio da promoção da Educação cidadã do aluno? Há algum reflexo no campo pedagógico?
A educação na escola é uma tarefa transcendental porque completa a necessária instrumentalidade para a gestão da existência pessoal. A escola oferece e integra conhecimentos gerais sobre o mundo e seu funcionamento e treina habilidades que capacitam o indivíduo a capturar, compreender e agir no contexto sociocultural no qual ele vive. Ao completar a educação fundamental, o aluno domina suficientemente a relação eu-mundo para compreender e assumir protagonismo na construção de sua vida em reciprocidade com o contexto. A escola o instrumentaliza para perceber a qualidade e o poder de sua ação, a mediação dos papéis sociais na relação eu-mundo e o balizamento de seus valores em suas atividades. Assim capacitado, ele se reconhece cidadão e compreende a diferença entre a ação cidadã e a ação individualista.
Os perigos da sociedade atual, estruturada em meios digitais e com tendência individualista, podem ser trabalhados na escola?
“Driblar” os perigos presentes em seu momento histórico é missão da escola. Hoje, dois desses perigos despontam no individualismo e no isolamento cognitivo e afetivo. Ambos facilitam a colonização da subjetivação por ideologias e doutrinas disseminadas na rotina das comunicações. Tanto o individualismo como o isolamento são facilitados pela farta disponibilidade de fontes de informação acopladas a ferramentas-sistemas. Essa arquitetura social amplia as interfaces do indivíduo e seu poder de ação, oferecendo alcance global para receber e agir. Essa ampliação facilitadora pela interação à distância, se não for acompanhada de desenvolvimento da reflexão, pode iludir o indivíduo produzindo a sensação de sua participação na sociedade, quando, de fato, pode ser mera participação transacional que facilita sua colonização por parte de ideologias e doutrinas diversas. O risco dessa participação limitada aparece na inibição da vida interior, empobrecendo sua subjetivação. Pesquisas recentes evidenciam a força dos ambientes digitalizados, no parasitismo passivo que treina o indivíduo mais para receber e comprar do que para construir, afastando-se de sua responsabilidade de cidadão.
Nesse contexto, a escola tem potencialidade para ser um instrumento que reproduz a estrutura social e para ser uma força de transformação. A escola pode fomentar a vida comunitária que demanda participação cognitiva, afetiva e responsável do indivíduo. A participação ativa capacita o indivíduo para resistir à sua colonização ajudando-o a diferenciar o individualismo do bem comum mostrando a interdependência de sua ação na relação eu-mundo. Agindo sobre os riscos de parasitismo, a escola protagoniza a defesa das ameaças à vida interior e ao empobrecimento da subjetivação.
Tendo em vista a evolução da humanidade, de que forma a Educação de hoje repercutirá no futuro?
O projeto cultural e pedagógico da escola capacita o indivíduo para construir seu futuro na sociedade. Muitas escolas absorvem e integram novas tecnologias sem consciência dos riscos sobre a subjetivação e a formatação da relação eu-mundo, limitando-se à inovação em seus aspectos instrumentais. O protagonismo do indivíduo como sujeito construtor de sua vida e da história é aprendido na vivência comunitária da vida escolar ao colocá-lo participante ativo de seu ambiente. Esse aprendizado pode e deve ser apoiado pelas tecnologias, sem que sua experiência sensorial da vida comunitária seja substituída pela vivência virtual. A previsão de larga expansão da robotização, nos próximos anos, onerará as escolas por demandar delas mais atenção e investimentos na formação do sujeito e do cidadão sabendo que atuará dentro de condições que favorecerão sua colonização.
Qual o papel da tecnologia no perfil do estudante do século XXI?
A tecnologia transformou-se numa linguagem que o cidadão necessita aprender. Arquitetada na condição de ferramentas-sistemas que cercam os indivíduos de procedimentos precisos para serviços diversos, a tecnologia fomenta a interação sem a mediação da vida interior. Essa forma de participação cria a interação na comunidade funcional na qual a vida interior perde protagonismo, daí o isolamento cognitivo e afetivo dentro do qual será mais complicado formar o cidadão e o sujeito. Essa cisão entre o fazer e a vida interior é um desafio para a escola. Dados empíricos recentes revelam que o enfraquecimento da reflexão e da consciência da reciprocidade na relação eu-mundo fomenta a perda da autoconfiança. Sem confiar em sua própria capacidade de identificar aquilo que é melhor para si, o indivíduo tende a buscar experts acreditando que estes sabem o que deve ser desejado e feito. A dependência desse apoio externo cria o “outsourced self”. A escola dispõe de meios para neutralizar essa tendência.
O jovem atualmente tem mais informação disponível, mas menos autonomia. Como a escola deve atuar nesse panorama?
A sociedade atual é caracterizada pela abundância de informação e pela omissão da formação da consciência crítica diante da alta diversidade de opções e diferenciação cultural e profissional. Dispor de abundância de informações não basta porque seu uso e valor dependem da interpretação e compreensão que o indivíduo encontra em sua subjetivação. As atividades da rotina dos indivíduos devem cobrar dele e lhe oferecer constantes feedbacks para lhe mostrar sua maturação e a diferença de compreensões distintas para as suas escolhas. Nessa tarefa, a família e a escola podem se aliar e criar forças para atuação conjunta. Essa aliança fortalece as duas instituições. Neste momento histórico, ambas requerem investimentos e dedicação às formas de aliança que favoreçam a riqueza da subjetivação, mesmo dentro de ambientes fortemente balizados pela tecnocracia.
Incentivar o protagonismo do aluno no contexto escolar ajuda a alavancar seu amadurecimento?
O fomento do protagonismo do aluno é obrigação da escola, em qualquer metodologia que for escolhida. O aluno aprende a ser sujeito sendo estimulado a julgar e escolher comprometido com a reciprocidade na relação eu-mundo. A busca e compromisso com a reciprocidade lhe propicia autoconfiança, que é requisito imprescindível de sua emancipação. O caminho do outsourced self afasta o indivíduo de seu protagonismo e de sua responsabilidade cidadã.
Quais benefícios pode trazer a parceria família-escola?
Discordo dessa formulação da pergunta. O mundo ganha complexidade a cada novo dia. Nele, a família e a escola enfrentam a competição das redes, da comunicação onipresente e da força invisível da cultura dos ícones. Nesse contexto, não cabe a busca de benefícios, mas da articulação de forças que resistam ao sufocamento de cada uma de suas dimensões, seja a biológica, a psicológica, a social, a política e a cultural. Na sociedade digitalizada, indivíduos e instituições requerem complementaridade para resistir a esse sufocamento. A escola e a família podem multiplicar suas potencialidades se sua parceria for consistente e regularmente acompanhada em seu desenvolvimento. Isso tem sido difícil porque muitas famílias e escolas partem de perspectivas individualistas de visão que prioriza o receber e o comprar frente ao construir e da limitação de que a responsabilidade é sempre da outra parte.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Reforma do Ensino Médio carregam elementos que favorecem a educação do século XXI?
Sem dúvida. Não há soluções perfeitas na sociedade digitalizada. As propostas contidas na Base Nacional Comum Curricular e a Reforma do Ensino Médio apresentam apenas uma trajetória que requer adaptação ao aqui e agora. Essas propostas oferecem um ponto de partida, referências e parâmetros são “traduzidos”, complementados e personalizados pela ação protagonista da escola aliada à família. No mundo digitalizado e globalizado todas as soluções são limitadas e insuficientes. Hoje, nossos recursos têm potencialidades criativas e destrutivas que devem ser consideradas no contexto particular de cada projeto. Pela reflexão crítica em contínua interlocução, podemos aprender o protagonismo do bem-comum na necessária tarefa da educação.